sábado, 26 de abril de 2014

O direito de viver na cidade ideal

Estava refletindo neste instante sobre mim e quanto minha mentalidade mudou com o passar do tempo. Lá pelos idos de 2011, 2012, eu era mais focado na questão urbana e nos textos sobre Primavera Árabe, Europa, Coréia (um texto que fez muito sucesso, inclusive).

Estou no 5o ano de geografia, muita coisa mudou, não sou mais o que era. Nostalgia? Não sei, mas sinto falta dos tempos em que meus textos eram livres e minhas idéias eram mais promissoras. Sendo bem específico, no que tange a questão das cidades, eu acreditava na mudança pela técnica, e na possibilidade de melhoria dos padrões de vida através de transformações urbanísticas aliadas a transformações educacionais e culturais. Criar um povo mais "civilizado", que se atente mais a questão da reciclagem, do paisagismo, da mobilidade urbana, do uso de técnicas arquitetônicas e modernas para promover um ar melhor, um viver na cidade melhor. O morar em um bairro caótico, sem ordem ou qualquer mínima organização arquitetônica e paisagistica, com lixo, esgoto, sujeira, insalubridade, nada disso entrava na minha cidade perfeita. Agora olho para as minhas idéias de uma cidade mais "civilizada", mais aprazível para seus habitantes, e me sinto julgado. Não consigo mais defender tudo isso sem a culpa incutida e colocada em mim nos últimos tempos, principalmente no meio acadêmico, mas também nas próprias redes sociais... Seria chamado de "coxinha", "reaça", "higienista", "segregador". Não existe mais discussão, ela morreu com o bom senso de não prejulgar que alguém com idéia X, necessariamente tem idéia Y. Isso se trata de um preconceito, um prejulgamento, que não reflete meu real pensamento sobre a cidade e a sociedade. 

Nem sempre fui assim, como bem disse. Antes eu era "puro", achava que o dizer certas coisas não levaria a uma conotação tão negativa e maldosa de pessoas que falam demais e fazem de menos.. Leio textos de grandes autores que escrevem políticas urbanas e não mais me identifico. Eles falam em "cidades para pessoas" (e não para o capital), falam sobre "o direito à cidade": no que eu imagino, como cidades para pessoas e direito à cidade, eu estaria de pleno acordo com eles. Porém, no que eles imaginam como tal, eu já tenho muitas duvidas sobre o que, de fato, significam suas idéias. Parece que o castelo de areia se desfez, alguns (mesmo estes autores) diriam que eu não quero aceitar toda a crueldade e violência aos quais muitas políticas de "renovação urbana" escondem.  Levanto aqui uma questão, que pouca gente aborda: políticas de "renovação urbana" estão alterando uma cidade perfeita, onde todos os moradores vivem em harmonia e dignamente? Nunca defendi a violência do estado sobre a população, o meu grande "defeito" se encontra no fato de que também não defendo modelos de gestão urbana que preguem a "resistência" em cidades que refletem miséria e falência de gestão. Muitas vezes, ou na grande maioria das vezes, a palavra "resistência" não vêm acompanhada da palavra "mudança", acaba vindo acompanhada da palavra "manutenção", manutenção de uma situação tão ou mais violenta quanto a proposta mudança "autoritária" do Estado. 

Defender um modelo ideal de cidade não é reducionismo ou autoritarismo, e essa culpa é difícil de se desfazer cada vez mais quando se discute uma política urbana. Não estou aqui negando as especificidades de cada cidade, mas defendendo que certas essências urbanas podem existir (e no fundo existem). Não se pode pensar ou acreditar que todas as realidades urbanas são de fácil gestão e tudo é solucionável na forma que se fez, nesse caso os próprios geógrafos urbanos e a própria geografia negam a importância do espaço, o modo como ele se constitui e os reflexos que a constituição dele causa. Certas questões são determinadas por aspectos meramente físicos: se você tem uma montanha no meio, não adianta achar que a via vai cruzá-la em linha reta. 

Não estou aqui para defender que favelas sejam eliminadas, para que manifestações urbanas consideradas marginalizadas sejam eliminadas ou que a gente destrua o passado e construa uma nova cidade em cima disso. Estou aqui, ai sim, para defender o que vejo como uma "cidade para pessoas" ou "o direito a cidade". Tais direitos são muito mais do que resistir e permanecer em um espaço físico... dependendo como este se constitui, é imprescindível transformá-lo. Certas barreiras ou impossibilidade físicas impedem de uma forma clara e evidente, que essas mudanças aconteçam.

Me lembro de um professor meu comentando sobre uma comunidade próxima a instalações para os jogos, na Barra da Tijuca, região de grande potencial imobiliário, devido as suas belezas naturais e intervenções urbanas pelo qual vem passando com grandes incentivos do estado. Ele dizia: "esta comunidade (próxima as obras) é a unica da cidade que não possui tráfico de drogas ou mílicias, e logo ela está sendo ameaçada pelos especuladores imobiliários." Ignorei o foco que ele queria dar (pois estava obvio) e pensei um pouco mais além: se esta é a unica comunidade da cidade que não possui tráfico, e na cidade existem mais de 500 favelas ou "aglomerados subnormais" (como são chamados pela prefeitura), existe algo muito grave nesses espaços que propicie o domínio de poderes paralelos. Claro, são espaços esquecidos pelo estado, que não entra ali de nenhuma forma, existem barreiras físicas, sociais e culturais. São o retrato do deficit habitacional e da falta de moradias e de condições de aquisição de moradia para todos. Naturalizou-se a manifestação urbana pois foi a resolução espontânea que pessoas a margem da cidade criaram para si mesmas... Essa constatação qualquer professor meu aplaudiria de pé. A grande questão é que fazer parte da cidade formal não implica simplesmente em resistir e permanecer, isso não implica em quaisquer mudanças. Para uma cidade, ou uma parte da cidade, fazer parte do mundo formal, ela precisa de condições para tal: condições físicas, financeiras e até mesmo, culturais. Um espaço repartido não se insere facilmente a todo o resto, ele precisa se reinventar. Já tive a oportunidade de ter contato com pessoas de comunidades do Rio, e lembro de ouvir questões como: "ninguém paga água, ninguém paga luz, e ninguém quer pagar","o estado chega e intervém de forma muito cruel e violenta". Bem, são dois pontos interessantes, se por um lado o próprio Estado não intervém nesses espaços como deveria, os próprios moradores também vêm vantagens em viver ali e muitas vezes não querem ser inseridos totalmente. É um andar construído a mais, e alugado, sem qualquer custo ou burocracia, é o acesso a internet e tv a cabo mais baratos, todos a margem do que se poderia chamar de cidade formal. 

Integrar esses espaços passa por dois esforços: o esforço do estado em respeitar e agir de forma cidadã nesses locais, e o esforço da própria população (e este não é citado), em querer sair da marginalização. É também a partir de um aumento da renda e do nível educacional desses moradores que essas iniciativas de dentro para fora podem contribuir para acabar com esse urbanismo partido, junto com a cobrança por uma ação mais responsável e cidadã do poder público. O estado não deveria estar ali para reprimir quem quer que seja, mas cabe também ao "reprimido" se mostrar pró-ativo na sociedade, esperar menos de um estado ineficiente, corrupto e populista, e entender que só a organização e ação conjunta e voluntária para mudar essa situação, enxergando-se ver como ator da mudança, e não apenas passivo. Conhecer um mundo diferente, e melhor, é um direito de todos, viver em uma cidade aprazível, menos poluída, engarrafada, mais verde, menos caótica e mais planejada e urbanizada, também é um direito de todos, esse é o "direito a cidade", aquele que implica também em deveres. Em benefícios e também sacrifícios em prol do bem comum, sacrifícios esses que passam pela regularização, pelo pagamento de contas e taxas que diminuirão os encargos e prejuízos sobre a cidade como um todo, benefícios que passem pelo acesso a transporte público, a serviços de saúde e educação, casas harmônicas e aprazíveis para se viver e um planejamento territorial que permita essa dinâmica, com ruas, escadas, praças e parques. Reurbanização aliada a construção de conjuntos habitacionais que permitam intervenções também físicas: intervenções nesse meio são inevitáveis e a unica forma de resolver o problema. Não acho que o foco seja a resistência, pois não vejo o "manter o que já está" como uma solução, pois não é; luto pelas transformações conscientes e importantes para a melhoria da cidade, que passam pela cidadania, transformações físicas, sociais e culturais: Criação de corredores verdes, conjuntos de casas que aproveitem energia solar, reciclagem de lixo, acesso de ônibus e ambulâncias, ambientes de cultura e lazer, clubes, centros culturais, ruas de comércio com calçadas largas e ampla circulação de pedestres, gabaritos e harmonia arquitetônica, acesso rápido a transporte público, integração física e plena, sem fronteiras visíveis entre o que era ilegal e o que sempre foi legal...

Por fim, me sinto até menos "culpado", sinto que meu projeto como cidadão da cidade do Rio de Janeiro está aqui definido em alguns parágrafos. Fiz minha parte, não posso mudar nada, apenas como estudioso da área e um jovem apaixonado por cidades, dei minha humilde opinião. No mais: que me desculpem as cidades feias, mas beleza - e qualidade de vida - são fundamentais. 


Antiga favela em Guayaquil, Equador.