quarta-feira, 4 de junho de 2014

Socialismo made in church

É interessante notar uma dicotomia bem interessante nos dias de hoje que se passa na população religiosa brasileira.

Parte dela se mantém intacta, com os mesmos preceitos de outrora. Muitos têm uma mentalidade bastante retrógrada, em geral, em relação aos gays, aos ateus, àqueles que crêem nas religiões africanas, a mulheres que querem ser independentes (e viver sem um companheiro) na sociedade. Alguns vão gritar nas Igrejas, outros nas ruas. Pregando, chamando para o culto, dizendo que somos uma sociedade de valores invertidos. São capitalistas, alguns se dizem liberais, embora tendam a ser menos laicos e muito intervencionistas. As contradições são variadas em um espectro que vai do mais conservador ao mais tolerante.

Porém, hoje existe um novo seguimento de religiosos "reformados" digamos, bastante "sui generis". São os religiosos socialistas. Bem, sabe-se da grande quantidade de evangélicos (também católicos praticantes, mas em menor quantidade) presentes nas universidades, faculdades de direito, cursos de ciências sociais, e muitos deles acabam absorvendo preceitos marxistas. Sabe-se que nesses cursos existe também um segmento marxista socialmente liberalizante, inclusive chegando ao outro extremo que defende a legalização de todas as drogas, relações poli amorosas, fumar, beber, perder o controle, contestar e contestar. Bem, parece que finalmente socialistas aprenderam a respeitar as minorias, pois antes tudo estava concentrado no campo proletário de relações de trabalho. Os marxistas aprenderam que podiam respeitar os gays, as feministas e os negros há pouquíssimas décadas, é o exemplo que aprendemos da URSS, de Cuba e da Coréia do Norte. Na Coréia do Norte, quase tudo que fuja à regra familiar, que seja contestador, é moralmente um tabu. Movimentos de minorias sempre começaram nos capitalistas EUA e na Europa, via de regra.

Mas voltando, o marxismo é historicamente ateu, e para os novos religiosos marxistas isso é um problema, eles mudam essa imagem. Frei Beto é um grande exemplo disso, ele tende a relacionar a luta de classes com a luta travada por Jesus por igualdade. Alguns já falam de Jesus Cristo como um grande revolucionário (e foi, de fato), praticamente um Che Guevara da vida... mas existem grandes diferenças. Jesus Cristo era um revolucionário da espiritualidade, da coerção através de idéias de paz, convivência, respeito. Não falava em pegar em armas, nem em algo parecido. Jesus não acreditava em governo ou em rei que pudesse mudar qualquer realidade, muito menos em uma elite do "rei" ou do "imperador", a atual elite estatal, que tivesse esse poder. Era sim coletivista, mas não tinha nada de socialista, até porque esta ideia só surgiu 18 séculos depois do seu nascimento.

Vejamos: eu, pessoalmente, me considero inclinado para o lado capitalista. Acredito que as pessoas podem ser boas, melhores. Também acho possível que os empregados não sejam explorados e que o patrão tenha um bom senso em seu respectivo negócio, acredito na filantropia e na caridade, na inciativa pessoal de ajudar os outros como uma forma incrível de melhoria das condições de quem precisa (e não sou cristão para dizer isso). Tudo isso se chama ética, e vem se perdendo. Enriquecer não é um crime, e o próprio luteranismo veio com essa ideia de reforma. A Igreja na idade média condenava o lucro, por isso não havia mobilidade social. Por outro lado, os senhores feudais viviam no luxo absoluto, gozando de tudo de melhor, apenas por terem nascido naquela condição, e outros que nasciam em categorias menores, eram renegados à pobreza vitalicia. 

Foi graças à nascente burguesia urbana, que os feudos acabaram-se, que privilégios de nobreza se acabaram, que se criaram estados nacionais, que ocorreu a Revolução Inglesa, a Revolução Americana, a vitória do norte na Guerra Civil Americana, a Revolução Industrial e a Revolução Francesa. Foi graças à busca por novas riquezas que o mundo mudou e, acredite, se tornou mais justo e igualitário. Pela primeira vez na história praticamente, ocorreu mobilidade entre classes. Não nego a função social do Marxismo que, muitas vezes, dentro de sociedades capitalistas, humanizou mais as relações e tornou deixou esse mercado mais equilibrado em relação aos que não puderam participar dele. Por vezes o estado atuou para ajudar os que mais precisaram e isso foi valido, criou-se o estado de bem estar social, etc.

O problema é que, hoje, quer-se acabar com o pilar de tudo isso, até dentro dos estados de bem estar social. O alvo é a busca por riquezas e, principalmente, fruto disso, por livre troca e livre comércio. Todas as sociedades que demonizaram o lucro, sejam elas marxistas ou muito antes da invenção dessa ideologia, faliram impreterivelmente, foram para o buraco economicamente e socialmente. Portugal e Espanha, extremamente religiosas, pararam apenas na acumulação de riquezas, deixaram de ser sociedades comerciais, seus membros passaram a viver apenas do que já tinham acumulado. No fim, ficaram para trás. Inglaterra, Alemanha e França prosperaram.

Tanto Alemanha, França e Inglaterra possuem um apoio estatal para os mais pobres bem estruturado, mas nenhuma delas abandonou o pilar do livre comércio, da capacidade de produção de riquezas, do incentivo à criatividade, à invenção, etc. Hoje até podemos ver um momento diferente e de possível mudança, mas deixemos para um outro post. 

Acontece que este novo religioso, marxista, nada mais parece aquele cara da idade média, modernizado pela história. Critica o lucro, critica o capital, acredita que é o governo que tem que ajudar sempre (o que não deveria ser, o governo deveria apoiar no básico, no essencial, e a iniciativa deveria fazer a grande diferença). Criou-se uma classe religiosa estatal, com muitas semelhanças ao clero. O Estado, quanto mais forte, quanto mais poderoso, quanto mais centralizado, menos possibilidades de fazer o bem terá, mais possibilidades de ser tirano, cruel e ideologicamente dominador... Muitos desses novos religiosos também não vêm a homossexualidade, a independência da mulher, o divórcio e a laicidade do estado com liberdade de escolha pessoal com bons olhos. Essas idéias permanecem, com tudo que são reformados, com a mesma ideia moralmente restrita de família, mas agora a família é marxista, não tem mais propriedade privada. 

Foi a burguesia que lhes deu a possibilidade de ser protestante, foi a burguesia que lhes deu a possibilidade de interpretar a bíblia, de ler e escrever, de frequentar uma escola, de ter algum dinheiro. Não foi Marx, nem Engels. Tampouco é santa a burguesia, pois é constituída de pessoas com interesses, mas são seus interesses que moveram essa sociedade a ser o que ela é hoje, de forma involuntária, não premeditada...

Também a burguesia inventou o estado laico, o que pode desagradar alguns destes mais fervorosos.

sábado, 26 de abril de 2014

O direito de viver na cidade ideal

Estava refletindo neste instante sobre mim e quanto minha mentalidade mudou com o passar do tempo. Lá pelos idos de 2011, 2012, eu era mais focado na questão urbana e nos textos sobre Primavera Árabe, Europa, Coréia (um texto que fez muito sucesso, inclusive).

Estou no 5o ano de geografia, muita coisa mudou, não sou mais o que era. Nostalgia? Não sei, mas sinto falta dos tempos em que meus textos eram livres e minhas idéias eram mais promissoras. Sendo bem específico, no que tange a questão das cidades, eu acreditava na mudança pela técnica, e na possibilidade de melhoria dos padrões de vida através de transformações urbanísticas aliadas a transformações educacionais e culturais. Criar um povo mais "civilizado", que se atente mais a questão da reciclagem, do paisagismo, da mobilidade urbana, do uso de técnicas arquitetônicas e modernas para promover um ar melhor, um viver na cidade melhor. O morar em um bairro caótico, sem ordem ou qualquer mínima organização arquitetônica e paisagistica, com lixo, esgoto, sujeira, insalubridade, nada disso entrava na minha cidade perfeita. Agora olho para as minhas idéias de uma cidade mais "civilizada", mais aprazível para seus habitantes, e me sinto julgado. Não consigo mais defender tudo isso sem a culpa incutida e colocada em mim nos últimos tempos, principalmente no meio acadêmico, mas também nas próprias redes sociais... Seria chamado de "coxinha", "reaça", "higienista", "segregador". Não existe mais discussão, ela morreu com o bom senso de não prejulgar que alguém com idéia X, necessariamente tem idéia Y. Isso se trata de um preconceito, um prejulgamento, que não reflete meu real pensamento sobre a cidade e a sociedade. 

Nem sempre fui assim, como bem disse. Antes eu era "puro", achava que o dizer certas coisas não levaria a uma conotação tão negativa e maldosa de pessoas que falam demais e fazem de menos.. Leio textos de grandes autores que escrevem políticas urbanas e não mais me identifico. Eles falam em "cidades para pessoas" (e não para o capital), falam sobre "o direito à cidade": no que eu imagino, como cidades para pessoas e direito à cidade, eu estaria de pleno acordo com eles. Porém, no que eles imaginam como tal, eu já tenho muitas duvidas sobre o que, de fato, significam suas idéias. Parece que o castelo de areia se desfez, alguns (mesmo estes autores) diriam que eu não quero aceitar toda a crueldade e violência aos quais muitas políticas de "renovação urbana" escondem.  Levanto aqui uma questão, que pouca gente aborda: políticas de "renovação urbana" estão alterando uma cidade perfeita, onde todos os moradores vivem em harmonia e dignamente? Nunca defendi a violência do estado sobre a população, o meu grande "defeito" se encontra no fato de que também não defendo modelos de gestão urbana que preguem a "resistência" em cidades que refletem miséria e falência de gestão. Muitas vezes, ou na grande maioria das vezes, a palavra "resistência" não vêm acompanhada da palavra "mudança", acaba vindo acompanhada da palavra "manutenção", manutenção de uma situação tão ou mais violenta quanto a proposta mudança "autoritária" do Estado. 

Defender um modelo ideal de cidade não é reducionismo ou autoritarismo, e essa culpa é difícil de se desfazer cada vez mais quando se discute uma política urbana. Não estou aqui negando as especificidades de cada cidade, mas defendendo que certas essências urbanas podem existir (e no fundo existem). Não se pode pensar ou acreditar que todas as realidades urbanas são de fácil gestão e tudo é solucionável na forma que se fez, nesse caso os próprios geógrafos urbanos e a própria geografia negam a importância do espaço, o modo como ele se constitui e os reflexos que a constituição dele causa. Certas questões são determinadas por aspectos meramente físicos: se você tem uma montanha no meio, não adianta achar que a via vai cruzá-la em linha reta. 

Não estou aqui para defender que favelas sejam eliminadas, para que manifestações urbanas consideradas marginalizadas sejam eliminadas ou que a gente destrua o passado e construa uma nova cidade em cima disso. Estou aqui, ai sim, para defender o que vejo como uma "cidade para pessoas" ou "o direito a cidade". Tais direitos são muito mais do que resistir e permanecer em um espaço físico... dependendo como este se constitui, é imprescindível transformá-lo. Certas barreiras ou impossibilidade físicas impedem de uma forma clara e evidente, que essas mudanças aconteçam.

Me lembro de um professor meu comentando sobre uma comunidade próxima a instalações para os jogos, na Barra da Tijuca, região de grande potencial imobiliário, devido as suas belezas naturais e intervenções urbanas pelo qual vem passando com grandes incentivos do estado. Ele dizia: "esta comunidade (próxima as obras) é a unica da cidade que não possui tráfico de drogas ou mílicias, e logo ela está sendo ameaçada pelos especuladores imobiliários." Ignorei o foco que ele queria dar (pois estava obvio) e pensei um pouco mais além: se esta é a unica comunidade da cidade que não possui tráfico, e na cidade existem mais de 500 favelas ou "aglomerados subnormais" (como são chamados pela prefeitura), existe algo muito grave nesses espaços que propicie o domínio de poderes paralelos. Claro, são espaços esquecidos pelo estado, que não entra ali de nenhuma forma, existem barreiras físicas, sociais e culturais. São o retrato do deficit habitacional e da falta de moradias e de condições de aquisição de moradia para todos. Naturalizou-se a manifestação urbana pois foi a resolução espontânea que pessoas a margem da cidade criaram para si mesmas... Essa constatação qualquer professor meu aplaudiria de pé. A grande questão é que fazer parte da cidade formal não implica simplesmente em resistir e permanecer, isso não implica em quaisquer mudanças. Para uma cidade, ou uma parte da cidade, fazer parte do mundo formal, ela precisa de condições para tal: condições físicas, financeiras e até mesmo, culturais. Um espaço repartido não se insere facilmente a todo o resto, ele precisa se reinventar. Já tive a oportunidade de ter contato com pessoas de comunidades do Rio, e lembro de ouvir questões como: "ninguém paga água, ninguém paga luz, e ninguém quer pagar","o estado chega e intervém de forma muito cruel e violenta". Bem, são dois pontos interessantes, se por um lado o próprio Estado não intervém nesses espaços como deveria, os próprios moradores também vêm vantagens em viver ali e muitas vezes não querem ser inseridos totalmente. É um andar construído a mais, e alugado, sem qualquer custo ou burocracia, é o acesso a internet e tv a cabo mais baratos, todos a margem do que se poderia chamar de cidade formal. 

Integrar esses espaços passa por dois esforços: o esforço do estado em respeitar e agir de forma cidadã nesses locais, e o esforço da própria população (e este não é citado), em querer sair da marginalização. É também a partir de um aumento da renda e do nível educacional desses moradores que essas iniciativas de dentro para fora podem contribuir para acabar com esse urbanismo partido, junto com a cobrança por uma ação mais responsável e cidadã do poder público. O estado não deveria estar ali para reprimir quem quer que seja, mas cabe também ao "reprimido" se mostrar pró-ativo na sociedade, esperar menos de um estado ineficiente, corrupto e populista, e entender que só a organização e ação conjunta e voluntária para mudar essa situação, enxergando-se ver como ator da mudança, e não apenas passivo. Conhecer um mundo diferente, e melhor, é um direito de todos, viver em uma cidade aprazível, menos poluída, engarrafada, mais verde, menos caótica e mais planejada e urbanizada, também é um direito de todos, esse é o "direito a cidade", aquele que implica também em deveres. Em benefícios e também sacrifícios em prol do bem comum, sacrifícios esses que passam pela regularização, pelo pagamento de contas e taxas que diminuirão os encargos e prejuízos sobre a cidade como um todo, benefícios que passem pelo acesso a transporte público, a serviços de saúde e educação, casas harmônicas e aprazíveis para se viver e um planejamento territorial que permita essa dinâmica, com ruas, escadas, praças e parques. Reurbanização aliada a construção de conjuntos habitacionais que permitam intervenções também físicas: intervenções nesse meio são inevitáveis e a unica forma de resolver o problema. Não acho que o foco seja a resistência, pois não vejo o "manter o que já está" como uma solução, pois não é; luto pelas transformações conscientes e importantes para a melhoria da cidade, que passam pela cidadania, transformações físicas, sociais e culturais: Criação de corredores verdes, conjuntos de casas que aproveitem energia solar, reciclagem de lixo, acesso de ônibus e ambulâncias, ambientes de cultura e lazer, clubes, centros culturais, ruas de comércio com calçadas largas e ampla circulação de pedestres, gabaritos e harmonia arquitetônica, acesso rápido a transporte público, integração física e plena, sem fronteiras visíveis entre o que era ilegal e o que sempre foi legal...

Por fim, me sinto até menos "culpado", sinto que meu projeto como cidadão da cidade do Rio de Janeiro está aqui definido em alguns parágrafos. Fiz minha parte, não posso mudar nada, apenas como estudioso da área e um jovem apaixonado por cidades, dei minha humilde opinião. No mais: que me desculpem as cidades feias, mas beleza - e qualidade de vida - são fundamentais. 


Antiga favela em Guayaquil, Equador.